Escondendo o Jogo
O raciocínio clínico é o processo pelo qual chegamos a um diagnóstico. É o maior aprendizado e talvez o mais difícil para os estudantes e para médicos. Esse aprendizado se inicia durante a faculdade e vamos aperfeiçoando ao longo do tempo, com treinamento e muita leitura. Talvez também seja, um dos mais difíceis para ensinar. Como ensinar a raciocinar?
Mas qual a finalidade de um bom raciocínio clínico, com tantos exames de imagens disponíveis? É justamente para não realizar exames complementares desnecessários e em excesso, as vezes prejudiciais para o paciente, que devemos traçar um plano diagnóstico baseado nas suspeitas diagnósticas mais prováveis. O raciocínio clínico também é necessário para saber interpretar corretamente os resultados de exames com base na probabilidade pré – teste desses exames. E tudo isso para um maior benefício para o paciente.
Vamos discutir um caso clínico apresentado na sessão clínica da residência de Clínica Médica do HGRS- BA
Paciente F. J. D. O. , 65 anos, sexo masculino, professor, católico, natural de Itabuna e procedente de Salvador, internado com queixa principal de dor abdominal em epigástrio há 9 meses.
A entrevista com o paciente, que visa entender a história clínica é o ponta- pé inicial para traçar um bom raciocínio clínico. E é importante o conhecimento de como as doenças se apresentam, suas primeiras manifestações clínicas e como elas evoluem, para assim fazermos as perguntas mais assertivas e mais relevantes para o esclarecimento diagnóstico. O paciente não chega com a história pronta; muitas vezes, eles valorizam dados que não apresentam relevância para o diagnóstico, ou o contrário, não valorizam o que tem importância. Somos nós que vamos fazer esse “filtro” e arrumar os dados em ordem cronológica e de importância clínica.
Diante de um paciente com queixa principal de dor abdominal, na história da moléstia atual devemos traçar toda a característica da dor – a semiologia da dor- pois o abdômen “esconde” vários diagnósticos, incluindo patologias não abdominais e patologias não orgânicas. Devemos também procurar os sintomas associados tanto relacionados ao trato gastro- intestinal como sintomas relacionados a cada sistema e também os sistêmicos como febre e perda ponderal.
Voltando ao caso clínico. O paciente relata que a dor é tipo queimação, intensa, de duração de algumas horas, diária, sem irradiação e com piora pós prandial, sem fatores de melhora. Associada a náuseas. Relata perda de peso de 15kg neste período. Nega todos os outros sintomas como icterícia ou alteração do ritmo intestinal. Refere que realizou alguns exames como endoscopia digestiva alta e ultra-sonografia de abdômen no interior e foram normais.
Aqui temos – dor abdominal, náuseas e perda de peso.
Perda de peso não intencional tem maior valor quando é mais de 10% do peso inicial. Perder mais ou menos 1kg por mês pode não ter grande valor para ser o sintoma principal neste caso.
Nesse caso fica mais fácil analisar a dor abdominal, apesar de ser um sintoma muito amplo, com várias causas, incluindo patologias não abdominais, como disse acima, mas aqui o que nos ajuda são algumas características da dor. É uma dor de evolução de 9 meses em abdome superior. Quando um paciente se queixa de uma dor abdominal com essas características, já devemos listar mentalmente as causas mais comuns desse tipo de dor( sempre o mais comum primeiro). Já afastamos aquelas causas agudas de dor abdominal como úlcera perfurada, pancreatite aguda, colecistite pela de evolução temporal.
E quais seriam as causas mais prováveis para este paciente de 65 anos? Devemos nos perguntar qual a patologia que tem essa apresentação e essa evolução, sem surgir outros sintomas? Isso é o que o nosso mestre Dr Carlos Geraldo sempre falou nas visitas de enfermaria que devemos sempre ter em mente “como a doença se apresenta para o médico?” “ como a doença te procura”?. Classicamente, podemos dividir o abdômen em abdome superior e inferior e neste caso temos podemos ficar com essas causas de dor em abdômen superior:
- Doença ulcerosa péptica = uso de AINE ou pylori; muitas vezes com sintomas de dispepsia e refluxo gastro esofágico.
- Pancreatite crônica = dor recorrente em abdome superior, associada a perda de peso, pode haver ou não diarreia; com forte associação com uso de álcool.
- Doença biliar = a dor mais comumente se localiza no quadrante superior direito, mais comum em mulheres, com obesidade, são mais comuns ser assintomáticos, causam dor quando há passagem do cálculo, ocorre 20% na população acima de 60 anos. O ultra sonografia é o exame de escolha, apresenta RV positiva =30
- Síndrome do intestino irritado= afeta 10% a 15% dos adultos, é uma das causas mais comuns de dor abdominal em adultos jovens; porém é 2 vezes mais comum em mulheres e tem associação com ansiedade e estresse emocional; entra no diagnóstico diferencial principalmente quando não há alterações estruturais nem alterações de exames complementares.
- Angina abdominal crônica= mais comumente em quem tem fatores de risco como doença coronariana, arteriosclerose como DM, HAS, IRC dialítico, fibrilação atrial; muitas vezes está associada a diarreia e a melena. A dor piora muito após alimentação.
Durante a sessão, muitos falaram de neoplasia de estômago e de esôfago. Um comentário sobre essa hipóteses. Classicamente, as neoplasia do TGI não entram nas listas de causas de dor abdominal; esse sintoma surgem ao longo da evolução da doença. O que predominam nessas patologias são a perda de peso, disfagia, alteração do ritmo intestinal. E geralmente não “ duram” 9 meses com exames iniciais normais.
E ai temos que pensar qual a probabilidade pré- teste para essas patologias enumeradas para esse paciente? E Qual a importância e como saber a probabilidade pré-teste?
Ela é o início de todo raciocínio e a partir dela vamos valorizar ou não um achado de exame físico ou saber qual o exame complementar mais indicado e ainda interpretar os resultados.
Para pensar qual seria a probabilidade pré-teste dessas patologias para nosso paciente, devemos levar em consideração a prevalência dessas doenças na população geral; além das características da dor, sintomas associados e os fatores de risco apresentados pelo paciente. Com o que foi dito até agora, 3 possibilidades são mais prováveis em ordem decrescente:
Pancreatite crônica– homem, faixa etária e dor abdome superior. É a mais provável. Falta o fator de risco
Angina abdominal crônica– hipertenso, apesar de não teroutrso fatores de risco, nega história de outras doenças aterioscleróticas, mas a dor piora com alimentação. Também não apresenta melena. Menos provável
Doença ulcerosa péptica – menos provável de todas, pois não apresenta os fatores de risco e tem uma EDA dita como normal, também não apresenta sintomas dispépticos.
Vamos seguindo na história clínica tentando obter informações para irmos juntando e montando o quebra-cabeça- diagnóstico, fazendo nosso raciocínio dedutivo com bases nos dados mais relevantes de acordo com a evidência/probabilidade.
Dos antecedentes médicos ele relata HAS em uso regular de losartana e tratamento para H. pylori há 6 meses. De hábitos de vida refere ser etilista desde os 18 anos, aos finais de semana, consumo abusivo de cerveja, abstêmio há 2 meses e Tabagista desde os 18 anos, cigarro industrial, menos de 1 maço/dia, abstêmio há 2 meses.
Essas novas informações modificam a probabilidade pré teste?
Qual daquelas patologias citadas acima, tem uma maior associação causal com etilismo? Para lembrar de associação causal vejam esse post Causa ou Acaso? . Associação causal direta com maior evidência é álcool e pancreatite crônica. Partimos então para o exame físico a procura de dados de reforcem ou refutem a nossa hipótese inicial.
Exame Físico: dados vitais dentro da normalidade e exame segmentar sem alterações ou achados patológicos.
Um exame físico normal confirma ou afasta a nossa suspeita? As vezes, ouço: “ o exame físico não ajudou muito, foi normal”. Ajuda a afastar outras possibilidades. Porém vale a pena comentar a acurácia do exame físico de abdômen. Poucos são os achados patológicos que apresentam uma boa razão de verossimilhança positiva.
Aqui um parênteses para comentar sobre sensibilidade, especificidade e razão de verossimilhança(RV). Qual a melhor?
Muitos ainda falam de sensibilidade e especificidade, valor preditivo positivo. Essas medidas pouco ajudam em mudar a probabilidade de ter ou não determinada patologia; isso acontece RV, sendo mais útil no raciocínio clínico; se é positiva aumenta a probabilidade e se negativa diminui. Muitos médicos sentem-se mais confortáveis com os termos sensibilidade e especificidade. No entanto, esses valores por si só têm pouca aplicação na prática clínica. Sensibilidade e especificidade são valores que se aplicam a um resultado de teste de triagem para separarmos os pacientes doentes dos não doentes.
Exemplo de aplicação clínica da RV = em um paciente com icterícia, se encontrarmos uma vesícula palpável – SINAL DE COIRVOISIER; esse sinal apresenta uma RV positiva de 26 ( com esse valor, se torna um sinal patognomônico ) para obstrução extra-hepática , afastando as causas de icterícia hapato-celular e tem uma RV positiva de 2,6 para neoplasia de vias biliares, ou seja, aumenta a probabilidade em mais de 20% da probabilidade pre- teste.
Há relativamente pouca informação sobre a precisão do exame no diagnóstico da dor abdominal crônica. A maioria dos estudos mostra que o achado de dor abdominal a palpação é comum em muitos distúrbios não orgânicos e tem pouco valor diagnóstico.
Em pacientes com suspeita de cólica biliar, a dor no quadrante superior direito não distingue pacientes com colelitíase daqueles sem ela, embora tenha menor dor a palpação abdominal. Em pacientes com dispepsia, a dor a palpação epigástrica não ajuda a prever se a endoscopia alta revelará uma úlcera, alguma outra anormalidade ou achados normais. Mesmo que o achado de dor a palpação tenha pouco valor diagnóstico em pacientes com dor abdominal crônica, o exame abdominal ainda é importante para detectar massas, organomegalia e sinais de abdome cirúrgico., principalmente esse último.
Diante de um paciente com dor abdominal, a importância principal do exame físico é afastar ou confirmar abdome cirúrgico, embora com pouca acurácia. De acordo com esses estudos, os achados que aumentam a probabilidade de peritonite mais são a rigidez (RV+ = 3,7), sensibilidade à percussão (RV + = 2,4) As evidências que diminuem a probabilidade de peritonite são uma sensibilidade positiva na parede abdominal (RV- = 0,1) e um teste de tosse negativo (RV- =0,4). A presença ou ausência de sensibilidade a descompressão muda a probabilidade relativamente pouco (RV+ = 2,0 e RV negativa = 0,4).
Já falamos de Rv neste post Até aonde podemos chegar?
Com tudo isso dito, o diagnóstico clínico mais provável é a pancreatite crônica.
Curiosidade . Qual a origem da palavra ABDOMEN
Exames complementares alterados:
HB/Ht = 9,8/ 29,3% FA= 341 / GGT = 444 / Amilase= 614 . Todos os outros exames de laboratórios foram normais.
Endoscopia Digestiva Alta =Abaulamento da segunda porção duodenal Duodenoscopia =Em segunda porção duodenal, nota-se um abaulamento da parede póstero-lateral, diminuindo parcialmente a luz do órgão, exibindo mucosa irregular, friável, edemaciada, com papila de difícil identificação, devido a deformidade da região e importante edema. Conclusão: Abaulamento da segunda porção duodenal: compressão extrínseca? Infiltração de neoplasia?
Biópsia duodenal: duodenite crônica com moderada infiltração eosinofílica, presença de linfócitos e plasmócitos.
TC de Abdome = o vídeo nesse link dropbox.
CPRM=o vídeo nesse link dropbox.
E esses exames, como interpreta-los?
Qual o diagnóstico final?